O culto, a hora solene, e a voz que ecoa dentro de nós.
A Rosa Fantasma finalmente deu as caras. Este capítulo era para ter vindo bem mais cedo, mas ele acabou sendo refeito várias e várias vezes... Enfim, 70% das pontas soltas da estória serão explicadas aqui, por isso, prestem atenção. A parte final deste interlúdio deve vim bem rápido, então até lá.
Interlúdio 2
Crianças Movidas Pela Fé, Vingança e Desespero Pt.2
19
Jothenville – 11 anos atrás
Como a
solidão pode moldar o futuro de uma pessoa?
Domingo de
manhã, Aria participava de uma missa na elegante capela de Jothenville. Por
nunca ter frequentado a igreja antes, seus pequenos olhos azuis absorviam toda
aquela novidade com uma grande curiosidade. Mesmo após o termino da missa, ela
permaneceu em seu assento, fitando as incríveis rosáceas nas paredes. Quando se
deu conta, todos os fiéis já haviam deixado o local, incluindo o padre.
Aria deu um
suspiro prolongado. Ela não queria voltar para casa, por isso, ao invés de
deixar a igreja, ela decidiu explorar por mais um tempo o interior daquela magnífica
construção.
Depois de um
alguns minutos caminhando, a pequena loira chegou a uma porta que aparentava
ser a entrada do confessionário. Curiosa, ela girou a maçaneta e foi
surpreendida por encontrar um cômodo sem nenhum tipo de móvel. Ali existia
apenas uma escada de cimento, que direcionava para um suposto segundo andar. Após
subir e atravessar um longo corredor, Aria parou de frente para uma nova porta,
ainda maior que a anterior. Essa encontrava-se aberta.
— Uma
estufa...? É enorme...
O piso
daquela sala era todo em mármore branco. O teto era um domo feito de vidro
translúcido, permitindo a passagem de luz solar. No centro havia um grande e
luxuoso altar adornado. Sobre ele estava... um caixão branco.
Hesitando
pela primeira vez, Aria atravessou a estufa e olhou dentro do caixão aberto.
Qualquer
criança de 8 anos ficaria apavorada com aquela cena, ou simplesmente não
entenderia o que estava acontecendo. Mas com Aria foi diferente.
— Você está
se sentindo... solitária...? — Ela sussurrou, ficando de joelhos ao lado do
caixão. — Eu também estou... Então, por que não fazemos companhia uma para a
outra...?
A pequena
loira sorriu timidamente para a marionete deitada no caixão.
— Aria? O
que você está fazendo aqui?
Uma voz
masculina e imponente ecoou pelas paredes daquele salão. Aria arregalou os
olhos e, hesitante, fitou o homem parado na entrada da estufa.
Marcos
Arthmael, seu pai, não demonstrava emoções. Aria não sabia dizer se ele estava
com raiva ou confuso por encontrá-la sozinha naquele lugar.
— Quem é
esta mulher...?
Por não ser
muito próxima de seu pai ausente, a pergunta da criança soou indiferente.
— ...Ela é
Sarah Amarante, sua mãe.
Aria
franziu o cenho.
— Isso...
não é possível. Minha mãe morreu durante o meu nascimento. Se esta mulher fosse
ela, seu corpo já teria decomposto há muito tempo...
A expressão
de Marcos finalmente mudou. Sua boca tomou a forma de um sorriso entusiasmado.
— Como o
esperado de alguém com o meu sangue. Tão jovem, porém tão inteligente.
Marcos
ficou ao lado de Aria e observou a sua esposa, perdido em pensamentos.
— O corpo
dela passou por um processo chamado de ‘Plastinação’.
Todos os seus líquidos corporais foram extraídos e substituídos por polímeros
sintéticos, conservando-a e protegendo-a das bactérias decompositoras.
Aria estava
de certa forma fascinada com toda aquela história. Até mesmo o tom de pele do
cadáver estava próximo ao de um humano vivo.
— E por que
você precisaria fazer isso...?
— Irei
trazê-la de volta.
Aria se
surpreendeu com a frieza dessa afirmação.
— É mesmo
possível trazer um morto de volta à vida?
— Muito
tempo antes do coração dela parar de bater, eu já estudava o corpo humano.
Mesmo naquela época, já haviam indícios de que era possível ressuscitar uma
pessoa. Durante todos esses anos após o seu nascimento, continuo estudando e
pesquisando sem parar. Tenho certeza absoluta de que cedo ou tarde encontrarei
uma forma de trazê-la de volta.
É por isso que você nunca está em casa?
Ao notar
aquele olhar triste no rosto do seu pai, Aria soube imediatamente que ele
estava insano, mas em nenhum momento duvidou das palavras dele.
— O que
você está fazendo é um sacrilégio...
Aria
abaixou o rosto e imaginou como seria ter uma mãe de verdade. Após acordar, ela
seria recebida com um bom dia caloroso. Antes de dormir, ela pediria para sua
mãe cantar uma cantiga de ninar. Com certeza sua casa não seria tão fria, e seu
pequeno coração não estaria tão cheio de angustia.
— O que
você pensa das minhas ações?
Marcos
perguntou com um tom levemente curioso.
Aria
escondeu o rosto entre os joelhos. Ela queria tanto chorar, mas suas lágrimas
se negavam a sair. Ela queria tanto gritar, mas o máximo que pode fazer foi
sussurrar.
— Eu...
quero ter uma família de verdade... Pelo menos uma vez...
O sorriso
de Marcos se alargou ainda mais.
A partir
daquela manhã, Aria passou a visitar Sarah diariamente, tanto para fazer
companhia, quanto para receber a companhia dela. O desejo corrompido de Marcos
passou a influenciar diretamente os pensamentos da pequena loira, fazendo-a
acreditar que era realmente possível ter sua mãe de volta.
— Bom dia mamãe...
Como você está...? Veja que rosa linda eu trouxe para você...
Todos os
dias, Aria levava um vaso com uma planta para dar vida àquela estufa. Com esse pequeno esforço, em poucos meses
ela já havia construído um gigantesco jardim.
◊
◊ ◊
Como uma simples
amizade pode mudar o futuro de uma pessoa?
O sol é
ocultado aos poucos pela linha do horizonte enquanto Aria espera pacientemente
pela chegada da lua. Ela abraça seu próprio corpo, tentando desesperadamente
aquecer seus membros congelados. A cidade à sua volta possuí infinitas formas e
cores, mas aos olhos dela, tudo é cinza, tudo é uniforme. Para alguns, viver é
o maior tesouro que o ser humano pode receber, mas para pessoas como Aria, a
simples tarefa de respirar é a mais cruel forma de tortura.
— Ah... Já
está na hora de voltar para casa, não é...?
A pequena
loira estava deitada sobre a grama, próxima de um rio que corria ladeira
abaixo. Ela podia escutar as brincadeiras e as risadas de algumas crianças que
se divertiam próximas dali, sentindo inveja delas, inveja de toda aquela
felicidade, de todas aquelas memórias sendo construídas.
No instante
em que Aria abriu a tampa da pequena caixa de música que repousava ao seu lado,
uma linda melodia tomou o ar. Nesse dia ela completava 9 anos de idade, e
aquela caixa de madeira foi o único presente que ela recebeu.
— A
empregada foi a única que lembrou do meu aniversário. — Um sorriso triste tomou
o seu rosto. — Será que o meu pai estará em casa para que possamos ao menos
jantar juntos? Não... Tenho certeza de que se perguntarem para Marcos qual é a
data do meu aniversário, ele não saberia responder.
Assim que a
caixa de música parou de tocar, Aria fechou os olhos, desejando adormecer.
Dessa forma ela poderia viajar para um novo mundo, cheio de colinas cobertas
por calêndulas. No topo de uma delas haveria uma casa humilde de madeira, com
uma grande lagoa no quintal. De dentro
dessa casa, Sarah observaria sua filha correr por entre as flores com um
sorriso cintilante no rosto.
Um mundo
perfeito, sem segredos, rancor ou mágoas. Apenas ali, a pequena garota de olhos
azuis seria capaz de sorrir verdadeiramente.
Aria abriu
os olhos, notando que a noite já havia chegado.
— Qual é o
sentido de viver? — Ela perguntou para a lua que brilhava imponente e solitária
no céu. — Mesmo sem uma companhia, você nunca deixa de iluminar a terra. Tenho
inveja de você, pois não sou forte o suficiente para sobreviver por mais tempo
neste universo solitário. Eu quero morrer... Você não quer morrer comigo...? — Sua
última pergunta foi apenas um sussurro. A resposta da lua veio na forma de um
vento gélido. — Eu posso desistir dessa ideia se você me mostrar as vantagens
de estar viva...
Passos
sobre a grama tiraram a pequena loira de seu devaneio.
Uma criança
de longos cabelos pretos se aproximou timidamente. Por um breve momento, Aria
pensou ter visto uma versão mais nova da sua mãe.
— Oi? O que
você está fazendo sozinha aqui no escuro?
Ela disse
com um sorriso.
Aquela
criança era o reflexo de Aria no espelho, seu lado oposto. Uma tinha a vida
repleta de alegria e amor, enquanto a outra possuía uma vida vazia e solitária.
— O que...
você quer...?
A loira
perguntou, confusa.
— Bem...
Desde cedo quando te vi neste lugar, fiquei com vontade de conversar com você,
mas só agora tive a coragem de me aproximar. Eh... Gostaria de brincar conosco?
Ela apontou
para o topo da colina, onde outras três crianças acenavam.
— ...Sim...
Aria
respondeu, hesitante.
— Meu nome
é Bianca. Vamos ser amigas?
Os olhos da
garota de cabelos pretos brilhavam com uma alegria genuína. Enquanto sorria de
forma inocente, ela estendeu sua mão.
No momento
em que Aria duvidava da sua própria existência e uma insuportável depressão
paralisava o seu corpo. Quando ela cogitava abrir mão da sua própria vida...
Aquela criança sorridente estendeu sua mão.
Assim que
seus dedos se tocaram, Aria pode sentir o gelo em seu coração derreter. Bianca
havia feito mais do que oferecer alguns minutos de diversão, ela conseguiu
salvar Aria do desespero.
20
Jothenville – Uma semana atrás
Era dia de
feira em Jothenville. As calçadas estavam tomadas por vendas improvisadas e as
avenidas cheias de pessoas correndo de um lado para o outro em suas maratonas
de compras.
Distanciando-se
daquela multidão, estavam duas mulheres de cabelos compridos. Elas eram como
uma espécie de imã para os olhares masculinos, atraindo a atenção de todos com
suas belezas acima da média.
— Obrigada
por ter vindo comprar roupas comigo, Aria. Tenho certeza de que o resultado não
seria tão efetivo se eu tivesse vindo sozinha... — Bianca falou, notando todas
aquelas pessoas encarando-a. — Mas confesso que é vergonhoso estar no centro
das atenções...
Ao lado
dela, Aria sorria casualmente.
— Não perderia
isso por nada nesse mundo. Eu havia prometido para mim mesma que nunca mais
deixaria você vestir aqueles trapos novamente.
Bianca
abaixou a cabeça, fingindo estar frustrada.
— Uuah...
Acabei de ser humilhada...
— Bianca,
você é linda, mas toda essa beleza acaba ofuscada pelo modo como você se veste.
Veja bem, desde a antiguidade os homens tratam as mulheres como verduras.
Apenas as mais atraentes são escolhidas, enquanto as que sobram acabam servindo
de alimento para os porcos. — Aria deu um sorriso irônico e girou no meio da
rua, como uma princesa rodopiando ao vento. — Ajoelhe-se diante do mais antigo
estereótipo criado pelo ser humano! Vivemos em um planeta onde as mulheres que
cuidam de seus corpos tem tudo nas palmas das mãos! Homens, dinheiro, fama!
— Não
conheço ela, não conheço ela, não conheço ela... — Bianca sussurrava, com o
rosto queimando de vergonha. — Espere um pouco! Ser tratada como um produto é
algo terrível, não?!
— Você
acha? Na minha opinião é algo bem conveniente. Veja quantas coisas consegui de
graça!
Aria
mostrou a sacola que ela carregava, cheia de frutas e legumes que havia ganhado
de alguns comerciantes.
— Desde
quando ser tratada como um objeto é algo bom? Tem muitas coisas erradas na sua
lógica...
— Não há
nada de errado. Na verdade deveríamos estar agradecidas. Graças aos
estereótipos, nós possuímos uma variedade quase infinita de vestimentas e
assessórios para utilizar. Sem isso todas as mulheres estariam trajando a mesma
roupa, falando e se comportando da mesma maneira. O mundo não seria tão
diversificado, não acha? — Aria levou uma mão ao queixo, pensativa. — Calma,
isso não seria apenas um novo
estereótipo?
— Ahhhhhh!
Vamos dar um ponto final nesse assunto! O grande problema é que seguir esse
estereótipo sai muito caro! Haviam muitos números no preço do meu vestido... —
Bianca suspirou pesadamente, sentindo-se um pouco arrependida por ter gasto
todo o dinheiro que recebera de seus pais. — Ah, mais tarde vamos até a fazenda
do Guilherme? Já faz quase um mês que não ando a cavalo... Estou com tanta
saudade que é capaz de eu só parar de cavalgar quando chegar na República do
Rio!
—
Desculpe-me... Mas hoje não poderei ir.
—
Novamente? — Bianca franziu o cenho. — É um encontro?! Você arrumou um noivo?!
Como sua amiga, tenho o direito de ser a primeira a saber!
Aria acenou
com as duas mãos, apreensiva.
— Não, não!
Nada disso!
— Uah, você
está ficando vermelha. Que bonitinha.
— Fique
calada, Bianca! Eu nem mesmo beijei ninguém ainda...
— Heh...
Será que algum dia você me contará o que faz durante todas as tardes? — Aria
apenas sorriu em resposta. — Bem, acho melhor deixar os cavalos para outro
dia...
— Se
quiser, amanhã posso ir com você.
— Hum, tudo
bem então... Nos encontraremos amanhã.
As duas se
despediram e seguiram por caminhos separados.
— Como você
reagiria se eu contasse que durante todas as tardes visito a minha mãe
falecida...? — Aria fitou o límpido céu do meio dia, sentindo seu corpo ficar
pesado de repente. — Provavelmente eu te perderia para sempre, não é...?
Logo após
adentrar o grande casarão da família Arthmael, Aria foi recebida pelo silêncio
de sempre. Normalmente ela encontraria a empregada trabalhando na cozinha, mas
nesse dia ela também não estava presente.
Aria subiu
para o segundo andar e, enquanto caminhava rumo ao seu quarto, notou que a
porta do escritório de Marcos estava semiaberta.
— Ele está
em casa? Que raro.
Mesmo que
Marcos não ligasse para o convívio com a sua filha, Aria ainda se esforçava
para juntar o pouco que restava da sua família. Por isso, sempre que possível,
ela tentava cumprimentá-lo, ou perguntar como havia sido o dia dele. A loira
sentia-se no dever de continuar tratando Marcos como um pai, mesmo sendo um
esforço unilateral.
Com isso em
mente, ela abriu a porta do escritório.
— Não...
Ao presenciar
a cena seguinte, Aria se viu com dificuldades de respirar. Seus membros estavam
paralisados, sua expressão era de espanto e confusão.
Marcos estava
tendo relações sexuais com a empregada.
O que mais
deixou Aria chocada não foi o fato de ter visto seu pai com outra pessoa, mas
sim por encontrá-lo com a mulher que era quase uma segunda mãe para ela.
— Você não
merece um monstro como ele...
A loira
sussurrou friamente sem sequer imaginar o passado que aqueles dois tinham
juntos.
Antes que a
sua presença fosse notada, Aria fechou a porta do quarto e deixou aquela casa.
Fugiu da realidade e de tudo que ela representava. Quando se deu conta, ela já
estava destrancando a porta da estufa, onde o corpo de Sarah repousava.
— Aqui
estou eu... Fugindo novamente... — Aria mordeu o lábio inferior até sentir o
gosto de sangue. — Por que a única coisa que sei fazer é fugir?!
Após dar o
primeiro passo dentro da estufa, um vaga-lume passou próximo ao seu rosto.
— Ah...
Finalmente.
Uma voz
gélida cortou o ar, fazendo Aria engolir em seco.
No centro
da estufa encontrava-se uma mulher desconhecida, fitando o cadáver de Sarah
dentro do caixão. Ela aparentava ter cerca de 19 anos de idade, possuía longos
cabelos pretos e vestia uma blusa escura sem alças com uma saia larga. Nas suas
mãos, luvas roxas estendiam-se até a altura dos cotovelos.
— Quem é
você? Como entrou neste lugar?
A porta
estava trancada, afinal.
— Aria
Amarante Arthmael... — Um arrepio percorreu a espinha da loira ao ouvir seu
nome completo. Apenas ela e Marcos deveriam saber da existência do sobrenome Amarante. — Sorria, o circo finalmente
chegou. — Ela abriu uma sombrinha púrpura repleta de babados e a ergueu sobre
sua cabeça. — Teremos para o dia de hoje um espetáculo que fará esta cidade
tremer. E você, loirinha, tem um assento reservado na fileira da frente, junta
de sua mãe marionete. Ah... Sarah Amarante... Era uma neurocientista promissora,
pena que morreu tão cedo.
As pernas
de Aria tremiam de medo, mas ela não podia recuar agora. Era de extrema
importância descobrir quem era aquela mulher, e o que ela estava planejando.
— O que
você quer? Diga de uma vez! — Aria respirou fundo e avançou pela estufa. — Como
descobriu este lugar? Como você sabe tanto sobre a Sarah? Responda!
A mulher de
cabelos pretos começou a brincar com a sua sombrinha, girando-a sem parar.
— As
respostas que você procura virão como uma tempestade no Nordeste, Aria. Uma tempestade
que deixará toda a realidade em pedaços. Um mundo repleto de traições, angustias, repúdio, caos e
corrupção se erguerá. — Ela prosseguiu em meio a gargalhadas. — Mentiras, mentiras, mentiras, mentiras e
mais mentiras. — Mas as gargalhadas de repente cessaram. — Abaixo da sombra
que Deus projeta sobre a terra, apenas os ignorantes confiam nas aparências...
— Assim que a mulher de cabelos pretos parou de girar a sua sombrinha, uma
feição fria tomou o seu rosto. — Escute-me com bastante atenção. Não importa o
que você veja, não importa o quão desesperador for... Você precisa sobreviver.
Mesmo que seu coração seja partido em milhares de pedaços, por favor, volte viva.
Aria
percebeu imediatamente que estava correndo risco de vida. Era possível sentir no
ar a intensão assassina que emanava da mulher de cabelos pretos. Algo grande
estava prestes a acontecer.
Em pânico,
Aria deu meia volta e correu em busca da saída. Mas quando estava perto de
atravessar a porta, incontáveis vaga-lumes se aglomeraram na sua frente,
fazendo-a cair para trás por causa do susto. Aquela quantidade absurda de
insetos tomavam todo o céu da estufa, formando uma gigantesca nuvem escura que não
parava de crescer.
— Boa sorte
na sua viagem de autoajuda, loirinha...
Enquanto
cantarolava, a mulher de cabelos pretos estalou os dedos. Ao seu comando, os
vaga-lumes avançaram, aos milhares, rumo ao corpo de Aria.
— AAAHHHHHHH!!!
A loira
tentou desesperadamente se levantar, mas no momento em que os insetos começaram
a entrar pela sua boca, nariz e ouvidos, o controle do seu corpo foi tomado.
Lágrimas desciam sem sessar pelo seu rosto. Quanto tempo havia se passado desde
a última vez que ela chorou? Uma dezena de anos, talvez.
Aria se
debatia freneticamente a medida que os vaga-lumes invadiam o seu corpo,
machucando tudo que encontravam pela frente. Em um certo momento, talvez pelo pânico,
ou pela dor imensurável, sua consciência foi apagada.
Mas foi
nesse momento que o verdadeiro pesadelo começou.
A mulher de
cabelos pretos sorria inocentemente, como se estivesse apreciando o ato
principal de uma peça.
— Muito
bem... A massa já está no forno, agora é só deixar assar por alguns dias. — Ela
levou o dedo indicador até a boca, como se uma brilhante ideia tivesse passado
pela sua cabeça. — Oh! Como tenho muito tempo sobrando, acho que vou dar uma
volta pela cidade. Talvez eu encontre alguma lojinha interessante, he he he. —
Com a sombrinha sobre a cabeça, a mulher de cabelos pretos saltitou até a
entrada da estufa, tomando o cuidado de fechar a porta ao sair. — Bons
sonhos...
◊
◊ ◊
Estou flutuando dentro de uma casa humilde.
Nesta residência vivem três pessoas. Não,
são quatro. Uma das mulheres está grávida.
Quem são eles? Por que são tão familiares?
Ah... Minhas memórias estão confusas. Quem
sou? De onde vim? Com qual propósito estou aqui?
Não importa o quanto me esforce, não consigo
lembrar.
Eu sou alguma espécie de deus?
Não... Talvez eu seja apenas um eco
ricocheteando pelas paredes, afinal, ninguém nesta casa notou a minha presença.
Sou apenas um fantasma na vida dessas pessoas.
Era
uma vez um jovem cientista de olhos azuis. Sua infinita curiosidade
era o combustível que...
Era uma vez uma jovem empregada que trabalhava
na residência da prestigiada família Arthmael...
‘Não posso deixar que meus senhores
descubram o que sinto...’
Cada músculo... Cada órgão... O jovem cientista
sabia tudo sobre cada um deles.
Aqueles olhos azuis
cheios de fascínio estavam a apenas um passo de
descobrir os segredos da vida e da morte.
Por causa de algo tão simplório, a empregada perdeu
tudo.
O amor tornou-se seu inimigo. Os sentimentos perderam
seu verdadeiro significado.
Inconscientemente ela foi até a cozinha, pegou uma
faca qualquer e caminhou
sorrateiramente até Sarah, atacando-a subitamente.
...o jovem cientista
foi chamado às pressas até
sua pequena residência.
Lá encontrou o corpo inerte de sua esposa.
A pessoa que ele mais
amava, caída sobre um tapete de
camurça manchado por um
líquido carmesim...
...Se eu chorar até a luz deixar meus olhos...
Se eu gritar seu nome até minha voz
falhar...
Você voltaria a respirar?
...o
jovem cientista pegou alguns de seus objetos cirúrgicos e foi ao encontro do
corpo de sua esposa, onde com um último sorriso a abraçou forte...
...Sarah pode
estar morta, mas ela
fez questão de levar consigo tudo que
era
precioso para mim. Minha felicidade,
minha filha,
meu futuro...
...Por que eu? Um
simples tolo dispensável! Eu e apenas eu, lançado no fogo do inferno e nas
garras do Diabo...
Ele escondeu o corpo de sua esposa
em uma grande construção, com a esperança de no futuro encontrar a tão desejada
cura para a morte, e assim ter seu próprio final feliz.
Aria ficou
desacordada por horas mesmo após todos os insetos deixarem o seu corpo. Durante
esse tempo, ela vivenciou os acontecimentos de 20 anos atrás. Cada dia, cada
segundo do convívio daquelas três pessoas.
Naquela hora solene, Sarah foi assassinada.
A expressão desesperadora que meu pai fez ao encontrá-la morta, ficou gravada
na minha mente. A dor, o pavor. Eu pude sentir no meu próprio corpo cada um
daqueles sentimentos que o massacrava por dentro. Ainda assim, eu não entendo,
não entendo, não entendo, não entendo...
Ela tremia
compulsivamente. Seus olhos abertos não refletiam a luz. O bater de seu coração
era quase inaudível, sua respiração, imperceptível. Nesse momento, Aria estava
mais morta do que viva.
Naquela hora solene, a empregada já havia
decidido que tiraria sua própria vida. O peso do pecado era grande demais para
que ela pudesse carregar. O sofrimento, a solidão. Pude vislumbrar todos os pesadelos
traumáticos que ela teve após a morte de Sarah. Ainda assim, eu não entendo, não
entendo, não entendo, não entendo...
Um sopro de
vida correu pelo corpo dela, forçando seu coração a bater normalmente. O sonho vívido
que ecoava pela sua consciência estava finalmente chegando à sua conclusão.
Nessa hora solene, a realidade perdeu
completamente o seu sentido. Quem é Aria Arthmael? Ela é filha de Sarah, ou da
empregada? O seu nascimento é uma farsa? A sua vida é uma mentira? Marcos Athmael é um mentiroso? A empregada
é uma assassina/mentirosa? O mundo sempre foi uma gigantesca teia de mentiras?
Mentiras, mentiras, mentiras, mentiras, mentiras...
Após
recobrar a consciência, sua primeira frase foi...
— Eu quero
morrer... — Não. Isso está errado. — Todos os mentirosos deveriam morrer.
Aria Arthmael é apenas uma substituta para a
filha que o grande cientista Marcos perdeu? Não... Aria não é digna de ser nem
mesmo uma substituta.
A loira
começou a rir do fato que sua mãe verdadeira sempre esteve ao seu lado,
proibida de exercer a sua função.
Quantas vezes desejei ter uma família?
Quantas vezes sofri por estar sempre sozinha?
Risos.
Mas minha verdadeira mãe/assassina estava em
casa, observando toda a minha angustia em silêncio, sem sequer pensar em
ajudar.
— AAAAAhhhhhh!!
Deitada
sobre o mármore frio, Aria gritou durante vinte minutos. Ela só conseguiu
forças para se levantar após cuspir toda a sua fúria, no momento em que o
coração encontrava-se completamente vazio.
Não há como consertar os erros do passado.
Após pecar, uma simples confissão não consertará as coisas. Se você mente para
alguém, a penitência dada pelo padre não diminuirá o peso da culpa que você
carrega. Se você mata alguém, implorar a Deus por perdão não te livrará de um
julgamento no céu.
Risos.
O passado, definitivamente, não pode ser
mudado e, inegavelmente, predetermina o futuro.
A loira
desejava desaparecer. Sair daquela cidade e nunca mais voltar. Por isso ela
deixou Jothenville sem ao menos buscar os seus pertences, enfrentando a imensidão
da Floresta de Caaporã, que já havia sido engolida pela escuridão noturna.
Pensando bem, o ser humano é
irremediavelmente um mentiroso por natureza. De tudo que aprendemos a falar, a
mentira com certeza é a mais conveniente. Tanto para escapar de uma bronca,
quanto para proteger alguém que amamos. Uma ‘mentira boa’.
Risos.
Mas eu, sem sombra de dúvidas, sou uma das
‘mentirosas ruins’. Eu não minto para proteger ou beneficiar as outras pessoas.
Eu minto para proteger a mim mesma. Minto para alimentar o meu ego egoísta.
Risos.
Por que estou julgando os meus pais quando
sou tão parecida com eles? Ah... Isso mesmo... Aria Arthmael realmente é filha
‘deles’. Tanto na aparência, quanto na personalidade. Nós três somos pessoas
incompreendidas e podres por dentro.
Após horas
caminhando, a loira se viu perdida na floresta. Ela não sabia para onde estava
indo, muito menos como voltar para a cidade.
— Estou cansada... — Aria fitou a lua
por trás das copas das árvores. — Eu quero morrer... Você não quer morrer
comigo...? — Ela sorriu ao falar essa frase nostálgica. — Eu posso desistir
dessa ideia se você me mostrar as vantagens de estar viva...
Aria deixou
seu corpo cair ao lado do tronco de uma árvore, enquanto lágrimas voltavam a
cair sem controle pelo seu rosto. Sua garganta queimava, seu coração batia
descontroladamente, seus membros estavam pesados como rochas, sua mente perdida
numa escuridão muito mais densa do que a daquela floresta.
— Não posso
acreditar... Não pode ser verdade... Ele não pode ter mentido para mim durante
todo esse tempo... — Aria sussurrava enquanto escondia o rosto entre os
joelhos. — Eu o farei pagar... Ele pagará por todos os seus pecados...
Após um
forte sopro de vento, passos desconhecidos ecoaram. Em seguida uma risada sarcástica
fez o coração da loira saltar para a garganta.
— Quem está
ai?!
— Você
abandonaria a sua humanidade para realizar um desejo?
Em um
piscar de olhos, a mulher de cabelos pretos havia aparecido. Ela caminhava em
direção à Aria com uma feição entretida no rosto. Sua boca tinha o formato de
um sorriso misterioso e assustador que simplesmente não combinava com o seu
rosto de boneca. Essa mulher ergueu um de seus braços e, imediatamente,
pequenos vaga-lumes uniram-se e transformaram-se em uma longa capa vermelha com
capuz. Essa simples vestimenta parecia reluzir, mesmo na escuridão da noite.
— Eu ouvi o
seu desejo e estou aqui para realizá-lo.
Aria não
conseguia se mover. Nenhuma palavra escapava pelos seus lábios trêmulos.
— Não
precisa ter medo. Estou aqui por que você despertou o meu interesse. Não tenho
a intenção de te machucar. — Seu tom de voz calmo deixava o clima ainda mais
pesado. — Sua fúria, sua angustia, seus desejos mais profundos, trouxeram-me
até aqui. Você não quer uma casa? Uma família? Você não quer... vingança?
No momento
em que a mulher de cabelos pretos deu seu próximo passo, milhares de vaga-lumes
cercaram as pernas dela, fazendo com que ela deslizasse graciosamente pelo ar.
Os vaga-lumes pareciam estar carregando-a.
Aos olhos
de Aria, aquela mulher era como um anjo negro, que estava agora a apenas um
passo de distância.
— Chega
dessa filantropia. Eu posso dar a você um poder capaz de reconstruir este mundo
amaldiçoado por humanos ingratos, corruptos, assassinos... Ou se assim desejar,
essa mesma força pode mandar tudo para o inferno.
—
Qu-Quem... é você...?
A voz de
Aria finalmente escapou em um sussurro áspero.
— Eu? Sou
apenas uma simples vendedora.
— Para que
eu possa ter esse poder... O que você pede em troca?
— O mesmo
de sempre. Sua alma e um pouco de diversão.
Antes que
Aria percebesse, suas lágrimas haviam secado. No seu rosto uma feição sombria
era iluminada pela luz da lua.
— Eu quero
destruir a fortuna que ele tanto preza... Eu quero acabar com tudo que ele mais
ama... Você pode me conceder esse desejo?
Com um
sorriso malicioso, a mulher de cabelos pretos tocou o rosto de Aria e prendeu
suas duas mãos contra o tronco de uma árvore. Em seguida calou qualquer grito
ou sussurro com um beijo, longo e profundo.
Aria sentia
como se fosse explodir a qualquer momento, mas não conseguia escapar, não queria escapar. Seu desejo de vingança
era ainda mais forte que a dor agonizante.
Aria não ligava para quem fosse aquela mulher. Ela tinha apenas uma
palavra ecoando pela sua mente, de novo e de novo, como um hino sem fim.
Vingança... Vingança... Vingança...
Seus lábios
separaram-se. A mulher de cabelos pretos deu um sorriso entretido, ainda
segurando firmemente as mãos de Aria.
— Então,
qual é a sua resposta?
— Eu...
aceito.
Barulhos de
passos voltaram a ecoar, sem sessar, vindos de todos os cantos da floresta.
Dezenas de olhos brilhavam na escuridão em meio a vultos negros que
aproximavam-se lentamente. Eram lobos, formando um círculo, com a mulher de
cabelos pretos e Aria em seu centro. Esses lobos enfim, deitaram-se.
— O que é
isso?! O que está acontecendo?!
— Eles são
frutos das suas orações. Você é capaz de controlá-los como desejar.
A mulher de
cabelos pretos lambeu os lábios e levantou sua mão esquerda, oferecendo o capuz
vermelho.
— Em alguns
dias duas pessoas aparecerão. Use isto e esconda seu rosto, pois no momento em
que sua identidade for descoberta, seu fim chegará, e seu sonho nunca se
tornará realidade.
Aria tremeu
em resposta.
— Quem são
essas pessoas...?
— Os
guardas do paraíso, Owen e Ellenia... — A mulher de cabelos pretos tocou os
lábios de Aria com seu dedo indicador, deu meia volta e retornou para a
escuridão da floresta. Os vaga-lumes que a seguiam aumentavam ainda mais a sua
beleza assustadora. — Só me faça um favor... Eu quero diversão, então
mantenha-me entretida pelo maior tempo que você puder, tudo bem?
A mulher de
cabelos pretos piscou e desapareceu na escuridão da floresta.
— ...
— ...
— ...Ah...
Ah... AH!!
Aria caiu
de joelhos, sem ar. O interior do seu corpo queimava, como se centenas de
insetos estivessem destruindo seus órgãos um por um. Os ossos de seus braços
torciam violentamente e consequentemente quebravam. O mesmo acontecia com o
restante de seu corpo.
Aria estava
mudando. Suas mãos estavam deformadas, seu pescoço estava torcido de uma forma
nojenta e grotesca. Ela não era mais humana. Os lobos acompanhavam aquela
mutação como cães adestrados, deitados sobre as folhas secas das árvores,
enquanto uivavam para a lua cheia que brilhava no céu.
A dor, o medo, o pânico... Desapareceram... Estou
em paz.
As
correntes que te prenderam por tanto tempo finalmente foram quebradas. A
sensação de liberdade é ótima, não é?
A partir
desse momento, uma voz doce começou a sussurrar no subconsciente da loira de
uma forma quase imperceptível.
Qual será o meu papel nesta peça doentia do
destino? A minha existência finalmente ganhará um significado?
Não
apenas um significado, Aria. Sua existência será reconhecida por aquelas
pessoas que te ignoraram durante todos esses anos.
Aria fitou
suas mãos, notando que elas estavam voltando aos poucos à sua forma original.
Este é um mundo infestado por monstros.
Agora que também me tornei um, finalmente serei aceita pela sociedade?
— Com estas
mãos, posso reconstruir a minha família?
Reconstruir?
Não acha impossível reconstruir algo que sequer foi construído?
Aria vestiu
a capa vermelha, utilizando a sombra provocada pelo capuz para esconder seu
rosto. Todos os lobos levantaram-se e começaram a marchar rumo à Jothenville,
guiando a sua nova mestra.
A loira
ainda não havia notado que seu modo de agir e pensar estavam sendo manipulados
de acordo com a vontade da mulher de cabelos pretos. Ela havia se tornado uma
marionete controlada por outra pessoa, como a sua antiga mãe, que dormia profundamente no Jardim dos Mortos.
O passado, definitivamente, não pode ser
mudado e, inegavelmente, predetermina o futuro.
Mas
isso não significa necessariamente que o futuro não possa ser mudado agora, no
presente.
◊ ◊
◊
Dezenas de
pessoas corriam aflitas para dentro da cidade enquanto os guardiões das
muralhas tentavam desesperadamente fechar portões que separavam Jothenville do
mundo exterior.
Cerca de
3000 pessoas tornaram-se reféns da sua própria fortaleza, onde a única saída
conhecida era bloqueada por dezenas de lobos furiosos que uivavam e grunhiam,
ameaçando atacar qualquer um que tentasse fugir para a floresta.
No centro
dessa grande alcateia, um grande lobo branco se destacava. Montado em cima dele
estava Aria, que tinha apenas seu sorriso visível graças a escuridão da noite.
Faça-os
tremer. Faça-os sucumbir ao próprio medo.
Os animais selvagens
poderiam facilmente invadir a cidade se tentassem, mas mesmo assim não o
fizeram. Tanto os lobos, quanto a controladora, permaneceram imóveis,
observando a população em pânico absoluto do lado de dentro.
Antes dos
portões serem completamente selados, a loira se pronunciou.
— Irei
matar todos aqueles que ousarem colocar os pés do lado de fora desta muralha. —
Sua voz ecoou alta o suficiente para que todos pudessem ouvir. — Morram de fome,
trancados nesta maldita gaiola.
Ao
testemunhar a destruição da sua amada cidade, Marcos aprenderá a dar valor as
coisas que realmente importam. Ou seja, você.
Aria não se
importava mais com o bem estar daquelas pessoas, muito menos ligava para as consequências
dos seus atos.
Estou fazendo a coisa certa?
Não
se deixe enganar. Marcos é um hipócrita.
Sua mãe/assassina é igualmente mentirosa. Os dois merecem sofrer, então leve um
pedaço do inferno para a porta deles. Faça-os experimentar um pouco do sofrimento
que você carregou por tanto tempo.
A voz doce
continuava sussurrando na mente de Aria, incentivando-a, manipulando-a.
Fazendo-a trilhar um caminho sombrio, sem volta, sem perdão.
◊
◊ ◊
Uma garrafa
de vinho tinto foi aberta e seu líquido despejado dentro de uma taça de
cristal. Enquanto apreciava o sabor da sua bebida, Marcos observava a população
em polvorosa através da janela de seu escritório.
Pouco tempo
atrás, ele havia sido informado da grande alcateia que amedrontava a sua
cidade, onde mesmo duvidando de boa parte da história que ouviu, autorizou a
mobilização do exército para conter e combater os lobos que ameaçavam a
segurança de Jothenville.
Uma grande
batalha sem precedentes estava prestes a começar.
Sem ao
menos bater na porta, uma pessoa trajando uma capa vermelha com capuz adentrou
o escritório em silêncio. Somente após tomar mais um gole do seu vinho, foi que
Marcos voltou sua atenção para a recém-chegada.
— Você
seria a pessoa responsável por todo esse alvoroço?
Disse,
furioso.
Um fantasma
pálido trajando uma longa capa carmesim. Foi dessa maneira que os guardas
descreveram a pessoa que aparentemente estava controlando os lobos.
— Olá,
papai. — Aria retirou o capuz e deu um sorriso venenoso. — Será que você teria
um tempinho para conversar com a sua filha?
— Aria...?
— Marcos estreitou os olhos, demonstrando surpresa por uma mínima fração de
segundos. — ...Sobre o que você quer conversar.
— Eh? Não
vai nem ao menos considerar a inocência da sua filha? — A loira cruzou os
braços e riu sarcasticamente. — Como o esperado do homem que faz experimentos
no cadáver da própria esposa. Você é um pai tão frio.
Marcos
cerrou os dentes, furioso com a atitude impertinente de sua filha.
— Você
sempre me odiou, isso não é nenhuma novidade. — Ele repousou o copo que
segurava sobre um aparador. — Mas atacar toda uma cidade apenas para chamar a
minha atenção?! Não importa se você enganou
todas essas pessoas com uma boa intenção, subjugar uma cidade inteira é um
crime imperdoável. Mesmo sendo a minha filha, terei que puni-la por essa
atitude infantil.
— Sua filha?
– Aria forçou uma risada. — Está falando da criança que foi roubada do ventre
de Sarah há 19 anos atrás?
O peso
daquelas palavras deixaram Marcos em estado de choque. Ele precisou mover a boca cinco vezes para que
sua voz pudesse escapar em um sussurro áspero.
— O quanto
você sabe...?
— Tudo. Sei
que Sarah foi assassinada, também sei que na verdade sou filha da empregada. —
O modo como Aria revelava tudo aquilo era deveras frio. — Sei que você nunca
amou a minha verdadeira mãe, tampouco
me amou. Todas as suas máscaras, todas as suas mentiras, agora sou capaz de ver
através de cada uma delas.
Uma pontada
de pânico cresceu no peito de Marcos ao notar a falta de ressentimento e culpa
no tom de voz da sua filha.
— Então
esse ataque tem mesmo o objetivo de me atingir. Tudo isso por que você supõe
que nunca te considerei a minha filha! — Ele foi capaz de juntar todas as
pontas soltas imediatamente. Ao conquistar Jothenville, Aria teria nas mãos
todas as armas para confrontá-lo, tais como: o laboratório subterrâneo e a
localização do corpo de Sarah. — O que você espera ganhar com essas ações
egoístas?! Quer que eu me ajoelhe e peça perdão por esconder o fato de que sua
mãe é uma plebeia?! Quer que eu me arrependa por não ter passado mais tempo com
você?!
— Errado...
Aria
responde, inquieta.
O que eu espero receber com essas ações?
Desculpas? Não. Eu sempre soube que Marcos não é um homem que se humilharia
dessa maneira. Então seria por vingança? Também não pode ser isso. É verdade
que no início eu estava com muita raiva dele, mas agora os meus sentimentos
estão sob controle. Então... por que estou fazendo tudo isso?
Por
diversão, é claro.
Diversão?
Não é
obvio? Lembre-se de todas as vezes que esse homem te ignorou, pense em todos os
momentos solitários pelo qual você passou. Aria, você estava cansada de
viver...
Realmente... Eu já estava cansada de tudo
isso.
Você
está subjugando essa cidade por que deseja fugir dessa realidade tediosa e sem
graça.
Isso é motivo suficiente para acabar com
tudo?
Veja
bem, basicamente todos os humanos vivem com a intenção de saciar os seus
desejos. Geralmente, um ladrão rouba outra pessoa apenas para sentir a
adrenalina correndo pelas suas veias, enquanto um assassino em série continua
matando por causa do prazer que sente ao tirar a vida de outras pessoas. No seu
caso, o tédio foi o gatilho. O seu desejo mais profundo é ter uma família de
verdade, e você fará de tudo para realizar esse desejo, mesmo que seja
necessário sacrificar toda a população dessa cidade.
— ...Você
está errado, Marcos. Não estou fazendo isso para puni-lo, tampouco para ser a sua filha. Desde criança eu já tinha
consciência de que era apenas um fantasma vagando pelas ruas desta cidade. Poucas
pessoas estão cientes da existência de Aria Amarante Arthmael. Será que você
consegue entender o quão difícil foi crescer sabendo que eu não era importante
para as outras pessoas? — Um sorriso triste tomou o seu rosto. — Eu quero deixar
de ser um fantasma... Eu quero me sentir viva...
Os olhos da
loira diziam claramente que se fosse necessário, ela destruiria seu próprio pai
para que sua existência fosse notada. Isso fez com que o cientista sentisse
pavor. Um sentimento que ele não experimentava desde a morte de Sarah.
— Que tipo
de monstro você se tornou...?
— Ah,
papai... Eu sou um monstro que você criou.
— Uma criança que no lugar de uma boneca,
recebeu o cadáver da própria mãe. — Olhe na direção da cidade. Já está
quase na hora. — Confuso, Marcos olhou através da janela mais próxima. Era
possível ouvir o rangido dos portões sendo abertos. — O exército está
contrariando as minhas ordens... Essa é a escolha errada, definitivamente.
Aria fechou
os olhos e inspirou profundamente. Após um breve momento de silêncio, vários
sons diferentes cortaram o céu noturno. Pessoas chorando, Uivos, rugidos, gritos,
desespero. Ao se dar conta do que estava acontecendo, Marcos engasgou com a
própria saliva, tamanho era o medo que sentia.
— É
verdade... Os lobos estão sendo controlados... Você está controlando-os...
— Mais do
que isso, papai. Nesse momento eu estou ligada a eles, como um órgão vital.
Tudo que os lobos veem, eu vejo. Tudo que eles sentem, eu sinto. Até mesmo os
alfas abaixam a cabeça na minha presença, dispostos a realizarem os meus
desejos.
Menos de
três minutos depois, os portões de Jothenville foram fechados novamente. Um
sinal de que o exército tinha falhado em sua missão.
— O que
você fez?!
— Não se
preocupe. Fiz questão de garantir a segurança de todos os soldados, apesar deles terem ferido seis dos meus lobos.
Essa
é a hora perfeita, Aria. Faça.
A loira
ergueu sua mão direita. Nesse momento, barulho de garras arranhando o piso de
madeira ecoaram pelos corredores do casarão.
— São
eles... Eles estão aqui... — Marcos recuou instintivamente, batendo no aparador
e consequentemente derrubando o copo cheio de vinho. — Mande-os embora! Aria,
mande-os embora!
Três lobos
marrons invadiram o escritório, grunhindo e rangendo os dentes enquanto se
aproximavam de Marcos.
Use
as habilidades do cientista ao seu favor. Sua primeira missão é tornar o
governante de Jothenville seu subordinado pessoal.
Risos.
Se não sou capaz de reconstruir a minha família,
só preciso criar uma nova.
Os lobos
pararam a três passos de Marcos, que se via encurralado pela parede do
escritório.
— Você vai
me matar?!
Aria apenas
sorriu em resposta, aumentando ainda mais o pânico que esmagava o coração de
Marcos. Naquele momento, o cientista realmente acreditava que sua filha seria
capaz de matá-lo sem sentir nenhum remorso. A loira era uma aberração da
natureza. Algo tão anormal que nem mesmo a ciência em que ele tanto confiava,
poderia explicar.
Deixe
Marcos temer o seu poder. Manipule-o, use-o. Assim que ele não for mais útil,
‘nós’ o descartaremos, assim como ele te descartou logo após seu nascimento.
— Não se
preocupe, eu preciso de você. Para convencê-lo, foi necessário criar todo esse
espetáculo, caso contrário, você nunca acreditaria em mim.
— Precisa de mim...?
— Quero que
você traga Sarah de volta. — A mulher que
ficou ao meu lado durante todo esse tempo. Aquela que sempre estava presente
quando eu mais precisava. Eu quero retribuir todo o bem que ela fez por mim até
hoje. — Desejo que você utilize o meu sangue para criar uma cura para a morte.
Aria
concluiu com um tom sério.
Meu sangue pode mesmo ressuscitar uma
pessoa?
Sim.
O seu desejo tornou tudo isso possível.
Marcos
ficou sem palavras, espantado com o gesto da sua filha. Após vários segundos em
silêncio, ele foi capaz de se acalmar novamente.
— Você deseja
tanto assim ter a Sarah ao seu lado...? — Um sorriso perturbado lentamente
tomou o rosto dele. — Se eu puder estudar as suas habilidades... Talvez seja
possível... Mesmo que as chances sejam mínimas... Talvez... Só talvez...
Poderei ver o sorriso dela novamente...
Pela
primeira vez na sua vida, Aria viu aquele homem chorar. O pai que ela conhecia
por ser frio e sem sentimentos, finalmente mostrava sinais de humanidade. A
esperança queimava em seu olhar insano.
— Gostaria
que você respondesse a minha próxima pergunta de forma sincera. — Aria ordenou
que os lobos ficassem ao seu lado. — Você sabe quem matou Sarah?
Marcos
arregalou os olhos, surpreso com a pergunta repentina.
— Sim. Eu
sempre soube.
— Por que
você a acolheu? Ela assassinou a mulher que você amava, roubou o seu filho e o
abandonou para morrer. Eu não consigo entender por que alguém escolheria ficar
ao lado de uma mulher como ela.
Marcos
abaixou a cabeça e ponderou por um momento.
— Sinceramente,
não sei. Por mais que eu desejasse vingar Sarah, por mais que eu tenha
amaldiçoado aquela mulher... — Memórias de 20 anos atrás passaram em um flash pela
mente de Marcos. Ele relembrou cada detalhe daquela fatídica semana após a
morte da sua esposa. — Quando eu estava perdido no meu próprio inferno na
terra, ela foi a única que teve
coragem de estender a mão para mim. Apesar de ter arruinado a minha vida, ela
também foi aquela que me salvou de um final trágico. Não deixo de pensar que estou
vivo graças a ela...
Ainda não sou capaz de compreender. Isso
significa que ele ama a empregada? É mesmo possível amar alguém tão
ambiguamente assim?
Essa
é apenas mais uma mentira, Aria. Não deixe palavras tão vazias mexerem com os
seus sentimentos.
Passos
ecoaram novamente. Ao olhar para trás, Aria encontrou a empregada paralisada na
porta.
Ah...
A maior das mentirosas finalmente chegou.
Por um momento
a loira teve vontade de revelar tudo que ela havia descoberto para a empregada,
mas no final decidiu ficar em silêncio. A expressão de Marcos dizia que ele
apoiava tal decisão.
A empregada é a pessoa que eu menos entendo.
Possuía uma vida plena e feliz, mas largou tudo por um amor que nunca seria
correspondido.
Não
tenha pena. Ela não merece o mínimo de compaixão.
Se ela tivesse contado que era a minha mãe
verdadeira, poderíamos ter fugido desta casa em busca de um futuro melhor. Mas
ela optou por ficar calada. Graças a essa decisão covarde, não consigo mais aceitá-la
como a minha mãe, tampouco tenho o direito de puni-la por seus crimes.
A
vida infeliz que ela possui, é punição suficiente.
Aria tornou
a colocar o capuz sobre a sua cabeça.
— A partir
de agora quero que você trabalhe arduamente na criação da cura. Você tem uma semana
para finalizá-la.
Marcos
abriu a boca para falar algo, mas desistiu logo em seguida.
— Tudo bem.
Farei tudo que estiver ao meu alcance...
Antes de
deixar o escritório, Aria fitou sua verdadeira mãe uma última vez.
— ...Quem é
você...? O que aconteceu com a Aria que eu conhecia...?
A empregada
sussurrou, confusa.
— Ela
cometeu suicídio há pouco tempo atrás.
Aria desviou
o olhar e deixou o escritório com os três lobos seguindo-a de perto.
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