A expedição no inferno.
Capítulo 3
Coberta Por Rosas Pt.1
Estamos aqui novamente. Eu e você no final de
mais uma história.
De vez em quando me pergunto o que teria
acontecido com a cidade de Jothenville se não tivéssemos tocado na carta
escrita por Marcos Arthmael. Todas aquelas pessoas teriam morrido? Ou,
contrariando todas as expectativas, teriam se unido e superado as adversidades?
Independentemente do resultado, pelo menos não teríamos sido responsáveis por
escrever mais uma página preta na história. Nossos nomes não estariam ligados a
mais um massacre.
O irônico é que acabamos ficando conhecidos
pelos nossos pecados, e não por todas as pessoas que salvamos.
Eu sei que você nunca se arrependeu da
decisão terrível que tomamos naquela noite. Fomos obrigados a cometer o crime
que ninguém mais estava disposto a cometer. Tomamos a decisão que nenhum outro
teve a coragem de tomar. Juntos, alimentamos o ódio daquela população enquanto
ensinávamos a única forma que conhecíamos de seguir em frente. Deixamos que
eles nos odiassem a fim de prover um futuro melhor para cada uma daquelas
pessoas.
Tenho certeza de que hoje eles são capazes de
resolverem seus próprios problemas sem dependerem de assassinos como nós, mas
se por algum motivo eles precisassem novamente da nossa ajuda, com certeza
lutaríamos uma vez mais para protegê-los. Entregaríamos nossas vidas em uma
bandeja, mesmo sabendo que acabaríamos com nossos corações em pedaços mais uma
vez.
Você odiava o final dessa história. Na
verdade, acredito que você odiava o final de cada uma das suas histórias, mas,
ironicamente, nunca deixou de escrevê-las. Acho que você apenas não queria
esquecer de partes importantes da sua vida, não é?
Por
isso permita-me ler as páginas finais deste diário para o seu túmulo vazio.
Continuarei relembrando as nossas aventuras até
os nossos caminhos se cruzarem novamente. Prometo que nesse dia te matarei com
as minhas próprias mãos... e seu túmulo não ficará mais vazio. Meu coração não
continuará tão... vazio...
Estarei esperando ansiosamente pelo nosso
reencontro, minha outra metade.
23
06:02 A.M – Labirinto Subterrâneo
Com o auxílio de uma escada, exatamente
quinze pessoas chegaram ao labirinto abaixo da cidade de Jothenville. Essa
equipe tinha como missão investigar o laboratório subterrâneo e resgatar
qualquer pessoa que pudesse estar sendo utilizada como cobaia em experimentos
ilegais.
De todos eles, Karen era inegavelmente a
pessoa com maior controle sobre os seus sentimentos. Mesmo estando em um lugar
desconhecido que abrigava ameaças mortais, nenhuma gota de medo emanava de seu
corpo. Um pouco atrás encontrava-se Sofia. Sua expressão era de exaustão,
refletindo a longa noite que passou sem dormir. A faca adornada que ela ganhou
da garota de cabelos castanhos tremulava na sua mão direita.
— Poderia me passar esta maleta, por favor? —
Karen falou com o subordinado que carregava os seus pertences. Assim que aquela
grande e pesada maleta foi aberta, seu conteúdo surpreendeu todas as pessoas
presentes. — Uaaaah... Vocês são tão lindas!
Dentro dela haviam duas grandes pistolas, uma
preta e outra completamente cromada, quatro cartuxos de munição, um Sensorium e
um cinto para guardar os equipamentos. Karen pegou as duas armas e as abraçou
com um carinho exagerado. Por um momento seus subordinados pensaram que ela
iria babar em cima das pistolas.
— Cris, Tina, me desculpem por demorar tanto
para usar vocês! Aah! Só de tocá-las meu corpo já começa a pegar fogo... Yaaah ❤!
Os gemidos exagerados de Karen trouxeram um
certo desconforto para o grupo que era, na sua grande maioria, composta por
homens.
— Pare de fazer sons estranhos, pervertida! —
Sofia levantou a voz. — E por que diabos suas armas possuem nomes tão
ridículos?!
Karen fez questão de beijar cada uma das
pistolas da forma mais erótica possível.
— Fui eu quem as projetou, então tenho o
direito de chamá-las da forma que eu quiser.
— Acabei de notar que você tem a criatividade
de uma criança.
— Ei, nanica! Independente das minhas ações
continuo sendo mais velha do que você! É melhor começar a me tratar com o
devido respeito!
— Já que parece estar na moda dar nomes vergonhosos
para as coisas, chamarei você de A Rainha
da Pistola Erótica a partir de
agora.
Karen arregalou os olhos, repentinamente
surpresa.
— Olha... Até que não é um apelido ruim...
Melhor do que Maluca das Bombas, como
uma certa mulher de cabelos brancos me chama...
Alguns subordinados deixaram escapar alguns
sorrisos. A conversa descontraída das duas garotas tinha sido capaz de amenizar
um pouco da tensão pesada acumulada no ar.
— Certo, preciso que prestem bastante atenção
agora. — Após colocar o cinto, Karen guardou as munições, o Sensorium e a
pistola preta. — Como Poucos de vocês possuem alguma experiência em batalha, o
sucesso da nossa missão e a sobrevivência deste grupo dependerá unicamente das
ordens que ditarei agora. Se vocês não as seguirem, estaremos destinados ao
fracasso. — Ela pegou um graveto e começou a fazer riscos no chão, desenhando o
túnel em que eles estavam agora.
— Primeiramente, como sou a única que possui
armas de longo alcance, tomarei a dianteira. Todos deverão ficar atrás de mim
até o momento em que eu ordenar, por isso evitem ações precipitadas. Vocês dois
com as lamparinas. No segundo em que eu der a ordem, um de vocês avançará vinte
e cinco passos para a frente e pregará a lamparina na parede, o mais alto que
puder. O outro deverá fazer a mesma coisa, só que vinte passos para trás. Nós
não enxergamos no escuro, mas até onde sei, os monstros que se escondem aqui
enxergam. Devemos proteger essas luzes custe o que custar, então, caso alguma
venha a apagar, a pessoa mais próxima deverá acendê-la novamente. Então guardem
os fósforos que entregarei agora em um local de fácil acesso. — Karen sacou
algumas pequenas caixas de fósforos na sua maleta e os distribuiu entre os
membros da equipe. — Deixarei bem claro que este grupo não deve em momento
algum se dispersar. Em caso de um ataque, não teremos chance de vencer lutando
individualmente, afinal, esses monstros possuem o dobro de força e resistência se
comparados a um humano normal. Dito isso, irei dividir-nos em três seções
diferentes. A primeira será composta exclusivamente por mim, já a segunda por
aqueles com idade inferior à 45 anos. Peço para que não hesitem. Evitem acertar
os membros, foquem-se apenas em arrancar a cabeça deles. Atingi-los no coração
provavelmente não irá matá-los, mas eles não serão capazes de atacar sem suas
cabeças. A terceira seção será formada por aqueles com idade superior à 45 anos.
Vocês serão o núcleo do grupo, o suporte. Se notarem que algum de seus
companheiros da segunda seção corre risco de vida, no máximo dois de vocês
deverão avançar e auxilia-lo. Os demais ficarão em espera para caso precisem
auxiliar outra pessoa da segunda seção. — As palavras de Karen haviam prendido
completamente a atenção daquelas pessoas. Apesar de suas atitudes infantis, ela
era com certeza uma grande estrategista, digna de seu posto em um dos mais
exércitos mais influentes do planeta. — Ceeeerto! Avançaremos em silêncio a
partir de agora. Sigam-me.
Os dois subordinados com os lampiões avançaram
na linha de frente, guiando o restante do grupo através dos vários túneis que
se interligavam formando um labirinto.
Cerca de dez minutos depois eles chegaram à
uma sala que estava com a porta de entrada completamente destruída. Sem dizer
uma única palavra, Karen ordenou que seus subordinados, exceto Sofia, esperassem
no corredor enquanto as duas investigavam o local.
Uma das paredes daquela sala estava em pedaços.
Karen se aproximou cuidadosamente e tocou pedaços de rochas espalhados pelo
chão, notando que algumas delas aparentavam ter sido derretidas.
Ellenia...?
As garotas atravessaram a fissura na parede
para o salão seguinte. Ali havia uma outra grande abertura na estrutura, dessa
vez no teto, permitindo a entrada de ar fresco e luz solar.
— De acordo com Ellenia, esta deve ser a sala
onde ela lutou contra um dos monstros. Aqui deveria ter dezenas de caixas cheias
de aparatos, mas agora está completamente vazia... Todas as caixas simplesmente
desapareceram sem deixar vestígios.
Karen levou a mão esquerda ao queixo,
pensativa.
— Estou com um mal pressentimento. Vamos sair
daqui...
Sofia sussurrou, escondida atrás da garota de
cabelos castanhos.
— Você está certa. É melhor voltarmos.
As salas eram com certeza os lugares mais
perigosos para caso ocorresse uma batalha. Por serem estreitas com o teto
baixo, os Meio-Humanos teriam uma
vantagem esmagadora sobre eles.
Karen e seu grupo avançaram pelos túneis por
mais quinze minutos até o momento em que uma série de sons agudos começaram a
ecoar em ondas.
— Isso são... garras?! Meu Deus...
Um dos
subordinados gaguejou enquanto recuava instintivamente.
— Não se desesperem agora! — Karen levantou a
voz, ignorando sua própria ordem anterior. — O erro de um de vocês pode custar
a vida de todos os outros. Sigam as ordens que ditei no instante em que
entramos aqui. — Todos ficaram em silêncio, com medo estampado em seus olhares.
Karen mordeu o lábio inferior, irritada com toda aquela hesitação. — As
lamparinas, AGORA!! Corram suas lesmas!
Como se despertassem de um transe, os
subordinados finalmente começaram a se mover, rapidamente pregando as luzes nos
locais indicados e retornando para suas devidas seções. O barulho de garras
arranhando o chão faziam com que os voluntários suassem frio, em pânico
crescente. O túnel tremulava, criando pequenos deslizamentos de terra que caiam
sobre suas cabeças.
Sofia nunca havia sentido tanto medo na sua
vida. Seu coração batia furiosamente como se tentasse fugir pelo pescoço.
— Respire fundo, criança. Use o medo que está
sentindo para ficar ainda mais alerta. Não tema nada do que está por vir, pois
nesse exato momento, a adrenalina que corre pelo seu corpo te transformou na
pessoa mais forte deste grupo. Não existe um monstro nesse mundo que consiga te
derrotar agora. — Um grande sorriso tomou o rosto de Karen. Um sorriso que
Sofia achou assustador de certa forma. — Se caso nos separarmos, junte-se a
terceira seção imediatamente.
Karen acariciou a cabeça de Sofia numa
tentativa de confortar a pequena criança que segurava seu vestido com força.
ROAWWWW!!!
GROAAAAA!!!
WOOOOAAAAHHH!!!
Emergindo da escuridão, um exército de monstros
surgiu em alta velocidade. Alguns corriam eretos, outros de quatro como animais
selvagens.
— O que diabos são essas coisas?!
Houve subordinados que ameaçaram fugir por
causa do susto, mas antes que a formação de batalha pudesse ser quebrada, Karen
pressionou o gatilho da sua pistola.
Primeiro veio um forte estrondo e, menos de
um segundo depois, um dos Meio-Humanos desabou com um grande buraco na testa.
Como todos os mutantes avançavam em uma manada, a queda do primeiro resultou em
um efeito dominó, derrubando outros quatro.
— PREPAREM-SE!! — Karen gritou, tornando a
puxar o gatilho. Mais e mais Meio-Humanos caiam sem vida, todos com buracos em
suas cabeças, sem exceção. Mas apesar de sua incrível precisão, ela não era
rápida o suficiente para matar todos antes que se aproximassem dos restante da
equipe. — SEGUNDA SEÇÃO, AVANÇAR!!
Ainda um poucos hesitantes, os membros da
segunda seção correram com suas facas e foices em mãos. Diferente da batalha
limpa travada pela arma de Karen, essa segunda parte foi marcada por um banho
de sangue. A estratégia de batalha criada pela Legior foi muito bem executada,
com todos os setores funcionando em conjunto. Karen focava seus disparos nos
Meio-Humanos que ameaçavam ferir fatalmente algum integrante do seu grupo,
oferecendo uma reforço considerável para aqueles que lutavam na linha de frente.
Até esse momento os humanos levaram vantagem
sobre os monstros, sem uma baixa sequer. Foi então que Dio saltou das trevas,
rugindo como um leão. Sofia engasgou de susto, escondendo-se imediatamente
atrás de Karen.
— Não deixarei que ele se aproxime de você. —
A morena apontou para o mutante de um braço e mirou na sua testa, disparando em
seguida. — Mas o quê?! — Pela primeira vez ela havia errado. Dio parecia ter
presumido a trajetória da bala, desviando e sendo atingido no ombro. Karen
franziu o cenho e começou a apertar o gatilho sucessivamente. — Morra! Morra!
Morra! MORRA!!
Nenhum disparo foi capaz de acertá-lo
fatalmente. Enquanto corria em ziguezague, Dio se aproximou do seu primeiro
alvo, um jovem que estava focado na batalha contra outro Meio-Humano. O
subordinado nem ao menos notou o momento em que o seu corpo foi dividido em
dois pelas garras de Dio.
A primeira baixa.
Sofia gritou e fechou os olhos com força.
Karen sequer piscou ao presenciar a morte de um membro da sua equipe.
— Tsh!
As mãos dela trabalharam agilmente na troca
de cartuxos da pistola cromada. Aquela era sua última rodada de munição
perfurante.
Enquanto isso Dio saltava sobre outro humano.
— Vamos lá Tina... Acerte!
Karen voltou a disparar, mas como antes,
todos os tiros erraram seu alvo. Dio foi acertado no ombro, peito, pescoço e
abdômen, mas continuou agindo como se nada tivesse acontecido.
— GROOOOOOAAAA!!!
Com um único golpe, O Meio-Humano fez com que
um homem quase quinze centímetros maior que ele girasse pelo ar, caindo já sem
vida sobre o chão. Menos de três segundos depois ele já havia partido para cima
do terceiro.
Karen atirou outras duas vezes, mas após errar
novamente, ela decidiu mudar de estratégia.
— Sofia, recue para o centro do grupo!
Disse enquanto depositava a pistola no cinto.
Sem ao menos olhar uma última vez para a
criança atrás dela, Karen correu na direção de Dio, ficando tão próxima que era
possível ouvi-lo respirar.
— Vamos brincar, só eu e você. — Karen sorriu
e chutou o Semi-Humano no estômago. — Garantirei que você se divirta como nunca
antes!
A morena era ágil. No momento em que Dio
tentou seu primeiro ataque, ele já havia sido atingido por cinco socos de
Karen.
— AAAAHHHHH!!!
O Meio-Humano lançou suas garras, mas encontrou
apenas o ar. Karen pulou e, após dar um salto mortal, chutou a mandíbula de
Dio, quebrando-a e fazendo-o cambalear. Notando que esse era o momento perfeito
para dar um fim a essa batalha, a morena sacou sua arma cromada e a apontou
para a testa do mutante enquanto sorria histericamente.
— Será que você conseguirá desviar de um tiro
à queima roupa?! Que tal fazermos uma pequena experiência?! — Sua mão estava
firme como aço. A pele do mutante a um centímetro de distância do cano da
pistola. — Bye, bye. — Ela pressionou o gatilho, mas apenas um clique pode ser
ouvido. — Eh?! Eim?! Como é que é?! A arma está descarregada?! Ah, não! Por que
as balas sempre acabam nos momentos mais cruciais?! — Ela deu uma risada fraca
com seu rosto corado de vergonha. — Às vezes sou tão distraída, te he he~.
Aproveitando-se dessa brecha, Dio
contra-atacou.
Após levar um forte tapa no tórax, Karen rolou
pelo chão de barro, parando apenas ao bater a cabeça com força em uma das
paredes. Desnorteada, sem conseguir ficar de pé, ela só pode observar em
silêncio o desenvolver da batalha.
O grupo que antes lutava unido, foi aos
poucos sufocado pelos nove Meio-Humanos que restavam. O resultado da
desproporção de forças foi o início de uma completa aniquilação.
— Por favor... Não, NÃO!!! NÃO ME MAT—
Sangue jorrou e seu corpo caiu aos pedaços
sobre o chão.
— ALGUÉM ME AJUDE! ALGUÉM, POR FAVOR!!
Mas não havia ninguém para salvá-lo dos dois
Meio-Humanos que o cercara. Poucos segundos depois, seu estômago foi rasgado por
dois par de garras, matando-o instantaneamente.
Em outro canto, um dos subordinados cravou
seu facão no peito de um dos mutantes e o chutou em seguida. O monstro acabou
tropeçando e, ao cair de costas, derrubou uma das lamparinas que se apagou
imediatamente.
As trevas engoliram metade do túnel.
No meio de toda essa chacina, Sofia estava
paralisada. Havia ficado difícil enxergar alguma coisa além de vultos e
sombras, mas com o canto de olho ela presenciou o exato momento em que seu pai
desmembrou friamente um jovem, arrancando dele gritos de agonia que ecoaram
como se fosse um hino macabro.
Sofia odiava tanto aquele monstro, mas sequer
tinha forças para encará-lo. O medo de morrer para aquele que possuía o seu
próprio sangue era um sentimento ainda mais repugnante.
— RHHAAAWWW!!!
De repente um jato de sangue voou bem na
frente da pequena pintora. Um Meio-Humano havia se infiltrado no coração do
grupo, matando dois subordinados da terceira seção ao mesmo tempo. O lugar mais
seguro no campo de batalha havia desmoronado.
O mutante estava a apenas oito passos da
criança. Aqueles olhos amarelados a fitava intensamente, transmitindo sua
intenção assassina. Incapaz de fugir, Sofia apontou a lâmina trêmula de sua
faca na direção do Meio-Humano.
— S-socorro... — Mas em vez de avançar, suas
pernas começaram a se mover para trás. —
Me ajudem... P-por favor...
Sofia estava certa de que iria morrer naquele
momento. Ela nem ao menos teve uma oportunidade para vingar a morte da sua
família, e esse seria o seu maior arrependimento.
O Meio-humano mostrou suas presas e ergueu
seu braço esquerdo. Sofia fechou os olhos com força, rezando por uma morte
rápida.
— TAMPINHA, NO CHÃO, AGORA!!
Sofia se jogou contra o barro instintivamente.
Cerca de seis metros adiante, Karen sacou sua
pistola preta. Um fio de sangue descia por um corte na sua testa, cegando
momentaneamente seu olho esquerdo. Ainda assim, aquele sorriso confiante era
uma confirmação de que ela acertaria o seu alvo.
— Kaboom...
Uma explosão. A forte onda de choque acabou
apagando o fogo da última lamparina acessa, deixando o túnel na mais completa
escuridão. Sofia podia sentir os pedaços da criatura que explodiu caindo sobre
si como se fossem grandes gotas de chuva, deixando-a enojada, desesperada para
fugir daquele lugar.
Nas trevas, o rumo da batalha podia ser
ditado apenas pela gritaria que ecoava. Aos poucos as vozes humanas
desapareciam, restando apenas os tons guturais provocados pelos Meio-Humanos.
— Karen... Karen... Onde você está?! — Sofia
começou a engatinhar, sem rumo. Em um certo momento, suas mãos tocaram a cabeça
decepada de um homem, banhando sua pele com o sangue alheio. — AAAAHHH!! S-Socorro! Socorro!
Sofia continuou sua tentativa falha de fugir
da guerra que a cercava, até que de repente seus dedos encontraram o objeto que
poderia salvar sua vida e a de todos os seus companheiros. Era uma das
lamparinas. Ela quase deixou os fósforos caírem, mas por sorte foi capaz de
acender a vela na primeira tentativa, trazendo de volta a luz para aquela
escuridão mortal.
Os olhos da criança demoraram para se
acostumar com a claridade, mas quando isso aconteceu ela desejou não ser capaz
de enxergar.
O chão ao seu redor havia se tornado um mar
de sangue e cadáveres.
A grande maioria daqueles que se voluntariaram
para salvar Jothenville estavam agora em pedaços. Sofia estava tão perplexa que
seu grito ficou retido na garganta. Ela não tinha mais forças para fugir, por
isso apenas ficou parada de joelhos no meio dos corpos, com suas mãos banhadas
em sangue e a vela da lamparina queimando ao seu lado.
De todos os quinze que desceram para a cidade
subterrânea, apenas três continuavam de pé, exaustos, lutando contra dois ou
três mutantes ao mesmo tempo. Sofia ainda não havia notado, mas a luz que ela
acendeu acabou servindo como um farol para aqueles que já haviam desistido de
qualquer chance de vencer.
Os três homens recuaram e formaram um círculo
com Sofia no centro. Um círculo protetor, um círculo de esperança.
Um círculo de despedidas.
Todos os sons cessaram momentaneamente
enquanto o grupo de monstros cercavam o que restavam dos humanos. Dio surgiu
entre eles, fitando unicamente a sua filha.
— SOFIA... — Um sorriso perturbador estava estampado em
seu rosto coberto de sangue coagulado. — VENHA PARA MIM...
Sofia se viu olhando para o chão, procurando
pelo corpo de Karen entre os cadáveres. A lâmina da faca na sua mão direita
feria seu braço, mas ela sequer sentia dor.
— O-onde você está...? V-você p-prometeu...
Você prometeu que eu teria a minha vingança... Você... não tinha o direito de
me deixar para morrer!
Sofia mordeu a própria língua, forçando seu
corpo a reagir. Lentamente ela ficou de pé e voltou-se na direção de Dio,
desafiando-o. A pequena criança que era considerada uma pintora prodígio, tomou
uma decisão que mudaria completamente o seu destino. Ela só morreria em paz se
levasse consigo aquele que matou sua família.
Sofia estava disposta a tudo para realizar
esse último desejo.
Dio urrou usando todo o ar de seus pulmões,
ordenando que os mutantes matassem os últimos sobreviventes. Em resposta, os
humanos ergueram suas armas, preparando-se para lutar até seus últimos suspiros.
— Você consegue sentir a força correndo pelo
seu corpo? — A voz de Karen ecoou, atraindo a atenção dos mutantes. — Consegue
sentir o ódio? A repulsa? Agora que você compreende o quanto esse caminho é
cruel, preciso que você me responda honestamente. — Uma risada breve. — Quanto
da sua humanidade você está disposta a jogar fora para destruir os seus
inimigos? Quanto da sua alma você está disposta a matar para ser capaz de
destruir alguém da sua própria família?
Sofia apertou o punho da faca com força. Suas
mãos ainda tremiam, suas lágrimas ainda caiam sem parar. Ainda assim, uma
expressão determinada estava estampada em seu rosto.
— Tudo... Toda a minha humanidade... Toda a
minha alma... Eu daria tudo de mim para ser capaz de destruí-lo com as minhas
próprias mãos!
— Então você pertencerá a mim a partir de
agora, pois irei realizar o seu desejo.
Aparecendo nas costas de um Meio-Humano,
Karen pressionou o botão de seu Sensorium, transformando-a em uma espada curta,
tão afiada que foi capaz decapitar o mutante em um piscar de olhos.
A morena sorria alegremente, sem sinais de medo
ou remorso. Era óbvio que ela estava gostando de todo aquele derramamento de
sangue, se divertindo como nenhum outro seria capaz.
Ela matou o segundo mutante tão rápido quanto
o primeiro, reacendendo a chama da esperança no coração dos últimos três
sobreviventes.
— MATEM TODOS!!!
Os subordinados gritaram e partiram para cima
dos Meio-Humanos, determinados a dar um ponto final nessa batalha.
Dio saltou na direção de Sofia, ignorando
todos os outros humanos. Mas antes que pudesse alcançá-la, Karen entrou na
frente dele com sua espada, forçando o mutante a recuar para não ter a sua cabeça
arrancada.
— Antes de enfrentar o inimigo, primeiramente
você deve derrotar o medo que paralisa o seu corpo. Use as lágrimas que descem
pelo seu rosto como combustível para alimentar a sua raiva. Use as memória da família que perdeu para
sempre lembrar o motivo para estar lutando. Você quer ficar mais forte? Então
canalize toda essa raiva acumulada na ponta da sua arma e ataque-o sem piedade.
Esse monstro fez você sofrer, então faça-o sofrer em dobro. — Karen sorriu
tranquilamente para Sofia — Pelo menos é assim que eu penso.
Sofia passou a se perguntar o que era
necessário para alguém se tornar forte como aquela Legior. Também se perguntava
o que poderia ter acontecido com Karen para transformá-la em uma pessoa capaz
de rir em uma situação desesperadora como aquela.
A morena lançou a lâmina do seu Sensorium na
direção de Dio. O Meio-Humano foi capaz de desviar, mas acabou surpreendido por
um segundo ataque, ainda mais veloz que o primeiro. Sua única alternativa foi
usar o último braço que lhe restava para proteger o seu pescoço.
— AAAAAAHHHHH!!!
Sangue.
Desesperado, Dio tentou uma última investida
sobre Sofia, sem dar importância para Karen a poucos passos de distância.
— Não pense que irei permitir!
Mesmo tendo a oportunidade de matá-lo
facilmente, a morena optou por cortar pela metade uma das pernas de Dio,
forçando-o a cair imponente no chão.
— GWAAAAAA!!!
O Meio-Humano se retorcia e gritava,
agonizando. Mas sua grande resistência à ferimentos o impedia de morrer
rapidamente.
— É o seu fim...
Karen voltou sua atenção para os outros três humanos
que lutavam bravamente. Os mutantes caíram um após o outro, e menos de três
minutos depois o último deles parou de respirar.
O profundo silêncio tomou completamente o
labirinto subterrâneo. Os três voluntários sobreviventes sentaram sobre o chão,
paralisados pela fadiga e pelo trauma.
Não haviam motivos para comemorar.
Eles desceram ao território inimigo com uma
simples missão, mas foram massacrados antes mesmo de cumprir esse objetivo.
Dio gemeu e se retorceu, mostrando que ainda
respirava. Sofia caiu de joelhos ao lado do corpo mutilado de seu pai. As lágrimas
haviam secado, suas pequenas mãos, antes trêmulas, agora seguravam firmemente o
punho da faca.
— Este é o meu presente para você. O monstro
que destruiu a sua inocência ainda respira. Se você realmente deseja seguir por
esse caminho, faça-o agora. Mate-o. Independentemente da decisão que você
tomar, não irei me intrometer. Estou decidida a apoia-la, afinal, é a sua alma
que está em jogo aqui, e não a minha.
Karen permaneceu ao lado da pequena pintora,
em silêncio. Todos os outros haviam voltado a atenção para as garotas. Nenhum
deles se atreveu a opinar, pois naquele exato momento só havia uma escolha a
ser feita.
— Eu... Eu... — A mente de Sofia era
assombrada pelas memórias de sua família. O rosto de cada um de seus irmãos,
todas as brincadeiras, todas as risadas. Cada um dos momentos preciosos que
passaram juntos... — ...Fiz a minha decisão...
Ela
definitivamente jogaria cada uma dessas memórias fora.
Karen olhou para o alto, perdida em
pensamentos.
Quantos
anos ela deve ter? Acho que 12, no máximo. É uma pena ver alguém perder a
infância de uma forma tão injusta, mas esse é o significado de viver em um
mundo tão cruel.
O
amanhecer nem sempre é belo.
As
santidades nem sempre são generosas.
E eu,
com certeza, não sou uma boa pessoa...
Gostaria
que meu irmão tivesse conversado com você naquele cobertura ao invés de mim. Com
certeza este desfecho teria caminhado para um final diferente. Uma criança como
você não teria escolhido um futuro tão perturbador...
Eu,
definitivamente, sou uma mulher horrível...
Espero
que Deus possa me perdoar...
Espero
que Deus possa perdoar você também...
Sofia ergueu a faca e a apontou para a cabeça
de Dio.
Até mesmo o monstro havia parado de gritar,
parte por estar à beira da morte, e parte por respeitar os sentimentos de sua
filha.
O Meio-Humano estava contente de certa forma,
pois aos seus olhos aquele era o modo perfeito para morrer.
— Adeus... Papai...
A lâmina adornada daquela linda faca cortou o
ar ferozmente.
Dio morreu após o primeiro e único golpe,
levando consigo para o inferno a alma de sua filha favorita.
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